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26.10.09

Eu, Palpites e Café


Pobres domingos: sempre condenados a encerrar um ciclo - o tédio que lhes é típico nunca permite o início de um. Quero dizer que ninguém opta por uma mudança drástica na sua vida em pleno domingo. Ainda mais se ele for ensolarado (deixando clara a minha impotência frente a essa combinação).

Se os últimos tempos têm sido de comilança além da conta, e justo no domingo você decide encarar definitivamente o espelho, de imediato começa a planejar um regime milagroso. Planejar, porque colocar em prática não cabe ao domingo, e sim à segunda-feira. Se o trabalho lhe toma tempo demais, e o que antes lhe proporcionava prazer só existe hoje em seus sonhos, uma introspecção dominical leva a uma mudança de atitude. Mas antes de adotar a nova postura, pilhas de relatórios aguardam ansiosas a sua exclusiva atenção, não o deixando esquecer do prazo de entrega que se aproxima. Mudança de atitude estando desempregado não lhe parece uma boa opção, então você empurra os idealismos de barriga, ficam pra segunda.

Porém, contrariando toda essa teoria insana, foi em um domingo que me aconteceu algo único, que teve início um dos mais importantes ciclos da minha vida: o amor.
Após saltar da cama (sou uma pessoa extremamente diurna, que fique dito), caminhava para a cozinha, para esquentar o leite para o café, quando me deparei com a mesa da sala de estar toda arrumada, me oferecendo prato, pires e xícara, garfo, faca e colher, café em pó, açúcar e - pasme - pão francês amanhecido! Primeiro, a surpresa; depois, a comoção. Foi a gota d'água para eu me entregar sem amarras à pessoa que havia feito essa gentileza, esse mimo: eu mesma.

De súbito, tudo ficou mais claro. Havia tempos eu estava me conquistando com presentinhos aqui, encaradas no espelho acolá... Mas a solidão de domingo de manhã, como que trazida pelos mesmos ventos desgarrados assobiados pela boca de Mário Barbará, me invade e me deixa completa e perigosamente vulnerável, a um passo de qualquer loucura que me alimente de humanidade. E eu soube direitinho onde me atingir. Foi, de longe, o café mais doce de todos os domingos.

Se existe algo que não me canse o paladar, por mais que o consuma, é café. E, claro, eu sabia muito bem disso. Ao fim da tarde, lá íamos nós - eu e eu - à livraria, para percorrermos todos os seus corredores, espiarmos uns bons pares de livros, e então sentarmos, eufóricos de felicidade (os livros eram um mero detalhe), numa de suas poltronas fofas e pedirmos um café. Foi aí que eu apelei, e tirei da bolsa o livro de poesias que sempre carrego comigo. Ficamos assim, entre palpites e café, e o tempo escorreu-nos, como areia rala, pelos dedos entreabertos.

O domingo ainda reservava uma noite incrível, entre suspiros e "como eu não percebi antes?!", despontando no raiar da segunda-feira. Iniciou-se, dessa forma, o meu, o nosso ciclo do amor. Ele até comporta uma terceira pessoa, formando um ciclo triângulo, mas que, de antemão se saiba, nunca será equilátero, visto que a distância que me separa de mim é muito menor que a imensa e duvidosa distância que nos separa de uma possível terceira pessoa.

A mesa continua posta, e assim permanecerá daqui pra frente. E é por essas e outras surpresas que eu digo - e Vinicius concordaria comigo -: me desculpem as feiras, mas domingo é fundamental.

10.10.09

O Pranto Celeste


Hoje o céu chorou. Chorou o dia todo, sem intermiscências. Sua tristeza molha a vidraça, os carros na rua, em contraste com a felicidade do casal que se banha, entre abraços, em seu pranto - mal sabem eles que essa tristeza escorrendo por seus corpos, tão súbita quanto o amor, irá lhes atingir o coração.
As lágrimas, logo ao amanhecer, encheram minha teoria da mais sensata convicção: mal se ocultou, a lua já havia deixado a saudade em seu lugar. Passaram a noite inteira juntos, com a lua irradiando seu brilho, como carícia, por toda a superfície negra, e esta destacando-a das reles estrelas que a circundam. Então, sem qualquer explicação, o astro foi, gradualmente, camuflando-se no azul cada vez mais claro que despontava, para perder-se calado.
Tudo corria bem - falo por mim, não pelo céu, que àquelas alturas já apelava às nuvens de poluição para abastecer sua tristeza -, até o momento em que minha teoria foi arrastada pela correnteza cada vez mais intensa de pranto, como tantas folhas desprendidas de árvores o foram. Era de se esperar que a tristeza perdurasse todo o dia, entretanto, a proximidade da noite não atenuou sua voracidade, nem ao menos o fizeram os primeiros brilhos da lua rasgando o céu, concretizando a sua chegada. Seria, então, o sol, que não mais o aquecia, a razão de tamanho desconsolo? As nuvens, carregadas de lágrimas, impediram a sua aparição durante o dia, e ele agora chorava, sentindo frio e saudade do calor do sol que o envolvia em abraço, aquecendo sua vastidão.

Hoje o céu não chorou. Não chorou o dia todo, sem intermiscências. Logo cedo, os raios de sol irradiaram na vidraça, nos carros na rua, contrastando com a gelidez do casal que caminha, silencioso, rumo a lugar nenhum, relutante em acreditar que a tempestade que os banhou ontem é menor que a de hoje. E quando os tons remetiam a fogo no horizonte, fez-se notar a lua, amparando, tímida, aqueles que hoje choram sem carícias de brilho, sem abraços de calor, carregando apenas as suas saudades infinitas.