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26.12.09

Essências


O Natal veio, tão logo se foi, e mal notei a sua passagem (o "chester" na mesa e o pinheirinho iluminado não permitiram o completo esquecimento). Não é com orgulho que essas palavras são proferidas. É com uma ponta de pesar por tudo o que foi e não mais é, irreversivelmente. O que uma vez era vivido com emoção e simbolismo, acompanhado daquele friozinho na barriga que antecedia a distribuição dos presentes, hoje veio, e tão logo se foi. E o pior: sei que não sou a única.

Quando foi que ficamos tão insensíveis? Não que tenhamos de crer irredutivelmente em tudo o que um dia nos foi ensinado, nem nos atirarmos em um consumismo descomunal movidos por um apelo sensacionalista (ou melhor: capitalista).
A questão é que, dentre tantas atribulações e compromissos a que somos submetidos diariamente, apegamo-nos ao que julgamos ser essencial para nós, e acabamos deixando outras tantas essências de lado. Toda a expectativa se perdeu, dada nossa crescente objetividade (o tempo nos é pouco... e tão valioso!). Perderam-se também os olhares (aqueles através dos quais se enxerga uma alma inteira, nua), tal como os sorrisos de canto de boca (aqueles que deixam escapar pedacinhos de alma não lapidada): inúmeros pequenos gestos, grandiosos pela sua capacidade de nos revelar tão naturalmente. Tentamos colocar palavras em tudo. Apropriamo-nos de vocábulos de outro idioma caso o nosso ainda não tenha designado um para determinada situação. Preenchemos silêncios cheios de significado. Enviamos cada vez mais e-mails, deixamos os telefonemas somente para as urgências - quando muito. Suspiramos ao sairmos de casa e ao regressarmos do trabalho, insatisfeitos com um destino que não passa do resultado direto de nossas próprias atitudes. O livro de cabeceira foi substituído pelo antidepressivo do momento. Incontáveis são os indivíduos que respondem ao "Boa Noite" do apresentador de telejornal para não terminarem o dia em completa afonia e solidão.

Nossas essências não soam tão essenciais... Em qual curva perdemos a nossa verdadeira natureza íntima? Ou será que a estrada que seguimos consternados nos conduzirá a ela? Se as respostas fossem lógicas e instantâneas, de nada valeria a caminhada. Restam-nos as flores à beira do caminho, o vento acariciando o rosto e ritmando o movimento dos fios de cabelo e o sol; que ele queime toda essa descrença e ilumine nosso longo e tortuoso trajeto.

20.12.09

Luíza, a estranha


Caso já não tenham percebido, eis a verdade: sempre fui meio estranha. Desde o princípio. Peixe fora d'água, cheguei a ser alvo da preocupação de minha mãe: "só pode ter algo de errado com essa menina".

Quando frequentava o jardim de infância, boné era acessório permanente na minha cabeça, protegendo-me de todos os olhares e julgamentos. Durante o recreio, nada de brincadeiras e risadas com os colegas: seguia a professora até a "Sala dos Professores" e esperava sentadinha o sinal tocar para, então, regressar à sala de aula na companhia dela.

Aos poucos, o boné foi ficando de lado e eu passei a conviver mais com os colegas. Nem por isso abandonei a timidez, marca registrada até o momento. Foi na segunda série do primeiro grau, aos sete anos de idade, que dei um passo significativo para vencer essa introspecção: participei do meu primeiro FELAC - Festival Lassalista da Canção. Foi cantando "Pense em Mim", de Leando e Leonardo, que subi no palco e encarei um ginásio inteiro lotado. Todos os olhares, toda a atenção, nenhum boné pra me salvar. Minha mãe havia providenciado um figurino especial para a apresentação, saia e colete jeans, no maior estilo sertanejo. Desisti da roupa numa crise pré-festival, quando também quase desisti de me apresentar. Convencida pelos meus pais, impus uma condição: cantaria de uniforme. Dentre os inúmeros participantes, eu era a única vestida de calça de moletom, camiseta de manga comprida e tênis "Fila". No palco, os movimentos percebidos eram o de um pé ritmado e o dos lábios cantando. Tirei o primeiro lugar, mas venci muito mais que um festival; venci uma timidez de grandes proporções, que não mais prenderia minha voz dentro de mim.

Mas a minha estranheza não termina aí. Minhas calças do uniforme do colégio eram frizadas embaixo, como as de ninguém. Já usava relógio de pulso desde sempre, como ninguém. Jogava futebol com os guris todos os recreios e detestava vôlei. Eu odiava dançar (hoje posso dizer que arrisco uns poucos passos; aliás, quem deve realmente saber dançar é o homem: a nós, mulheres, cabe acompanharmos o par...). Eu gostava (e gosto) de estudar. Cheguei a trocar de turma para ter aula com determinado professor, deixando meus amigos em outra sala. Até hoje não suporto usar salto. Se o faço, é as custas de muito sacrifício e extrema necessidade. Ainda troco as vitrines de lojas de roupas e calçados pelas de livrarias. Adoro tomar café à noite. Com leite. Não tenho nenhuma tatuagem e nada além de um furo para brinco em cada orelha - e assim sempre será. Saí de casa, embora todos os amigos tenham ficado. Foram várias as sextas-feiras que dormi antes das 22h e inúmeros os sábados e domingos nos quais levantei antes das 7h. Mesmo vestida e maquiada, consegui dormir antes de uma festa, abdicando dela, por ter esta começado muito tarde: 00h45. Ingeri bebida alcoólica numa festa pela primeira vez aos dezessete anos - e achei engraçado o seu efeito. Culinária realmente não é o meu forte. Costumo jantar até às 19h30 - e então fica evidente a extrema necessidade do relógio de pulso. Adoro inverno. Giro a chave duas vezes ao trancar a porta, rigorosas duas vezes. Enquanto todos visam Curitiba, eu escolhi Porto Alegre.

Todos somos estranhos ao nosso modo. Afinal, o conceito de "normalidade" é bastante flexível e ganha contornos e recortes de acordo com cada personalidade. Minha estranheza também não termina aí, mas não vou entregar tudo de bandeja.

18.12.09

O que o teu silêncio me diz


Eu sei o que o teu silêncio me diz.

Eu sei pelo teu olhar
Que te condena pelo modo de brilhar.
Eu sei pela ruga da tua testa
Indignada sempre que alguém te contesta.
Eu sei pela covinha da tua bochecha
Que diz sozinha "não toque", "não mexa".
Eu sei pelo bater dos teus dedos na mesa
Dando voz a toda a tua tristeza.
Eu sei pelo teu andar torto
Desviando do que te causa desconforto.
Eu sei pelo teu sorriso amarelo
Janela direta para o que tens de mais belo.
Eu sei pela tua mão que sua
Transbordando de tanta amargura.

Eu sei bem o que quer dizer a tua palavra não dita.
Sei, por isso me faço desentendida.

6.12.09

Mudança, a única constante


"Você não sente, não vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer.
O que há algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer."
(Belchior)

Ao olharmos fotografias de 40, 50 anos atrás, deparamo-nos com um tipo de mudança: aquela escancarada aos olhos, que tende a contrastar com o que nos circunda hoje sem o menor esforço.

Guiando-nos pela moda, as roupas dos anos 60 marcaram época ao incorporar, em cada curva e prega, as ideologias desafiadoras que embalavam toda uma geração. Nas mulheres, vestidos rodados e minissaia, estampas psicodélicas e geométricas, além das botas de cano longo. Nos homens, a influência dos Beattles era marcante, traduzindo-se em paletós sem colarinho, calças justas e japona do pescador.

Entretanto, dando um pulo na década seguinte, percebe-se que suas características mais evidentes em nada remetem à que a precedeu. Foi a época de reverberação do Festival de Woodstock, ocorrido em 1969. Os revolucionários de 60 assumiram uma postura mais calma na década de 70: os hippies. As urgências do mundo tiveram menos importância do que a própria satisfação e felicidade. O "Flower-power" estampava-se nos jeans bordados de flores, pantalonas tipo "Oxford" e saias longas e vaporosas até o chão, e vociferava, entre as notas de Led Zeppelin, "Make love, not war".

Essa viagem ao passado evidencia que mudanças são naturais, são saudáveis. Refletem toda a nossa inquietação, nossos sonhos latentes. E deixam marcas profundas, que são percebidas até hoje, seja no jeans que não sai do nosso corpo, seja na crença da paz e do amor (apesar desta estar um pouco empoeirada e jogada no cantinho da nossa sala de preocupações - tantas são as bobagens prioritárias!).

Entretanto, existe uma outra mudança. Muito menos evidente, tamanha a sua discrição; muito mais drástica, dada a sua proximidade. É a mudança que ocorreu semana passada, mudança que ocorreu ontem, e que ainda está ocorrendo. É a mudança que se dá dentro de nós. Assumimos uma nova postura, formulamos novos planos, abandonamos velhos idealismos. Nem ao menos percebemos o quanto vamos ficando diferente do que éramos... ontem. Despimo-nos, vestimo-nos. O "jeito de ser" recém-adquirido nos impulsiona a seguirmos, diariamente, a caminhada, repleto que está de possibilidades de encontrarmos "paz e amor" logo ali, logo além...

É necessário despedidas, algumas lágrimas, um certo aperto no peito - prova de que não nos falta humanidade e, pricipalmente, coragem. Coragem de muitas vezes contestar o que nos é imposto - por vezes mais cômodo - para buscar a nossa realização, a nossa promessa de felicidade - ainda que nossos sonhos sejam um tanto quanto utópicos: afinal, com os dois pés na realidade, de nada valeriam!

As luzinhas já estão piscando nas casas e monumentos; não há melhor momento para guardarmos a velha roupa colorida, cantarolando com Elis: "no presente, a mente, o corpo é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais".


ps.: é domingo, domingo ensolarado, e eu estou em casa novamente: nada mais inspirador (e perigoso).