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16.11.10

A visita


Não era dia de visitas, nunca havia sido. Ela não costumava manter a casa organizada esperando que estas aparecessem, nem tinha o hábito de organizar a si própria para receber qualquer estranho ou conhecido. E ela o fazia de maneira inconsciente.

Depois de já ter organizado a sala tantas vezes, tirado o pó que encobria tanta coisa - que talvez devesse ter permanecido encoberta, por fim -, guardado retratos antigos na esperança cega de que ocultar memórias fosse igualmente simples, depois de ter comprado flores com novos aromas, tapetes com novas texturas e quadros com paisagens renovadas, ela percebeu que cada transformação trazia, como que atrelada à mão, várias invenções consigo. Invenções de desculpas, outro compromisso qualquer, com pessoas da mesma forma inventadas. Inventando para si própria, desde o princípio, um motivo que justificasse a visita e uma possível continuidade dela. Afinal, o sofá era de veludo nobre, as paredes eram claras, e a geladeira sempre estivera farta: não haveria motivos para o visitante recusar um próximo convite.

Mas o convite não era refeito. Ela não queria receber novamente o visitante. Não que a visita fosse de todo o mal. Ela sabia disfarçar o seu lado antissocial quando bem convinha - procurava manter-se sempre bem informada quanto às condições climáticas, já que conversar sobre o tempo era um remédio deveras eficaz contra silêncios constrangedores. O problema dela não estava em encantar, mas em ser encantada.

Foi justamente num dia de sala desorganizada, com o pó encobrindo cantos e retratos antigos, flores murchas, tapete velho e quadros vazios que ela recebeu um novo e inesperado visitante. Fosse esperado, não o receberia naquelas condições, com tais roupas, o cabelo por arrumar, a pele sem maquiagem nenhuma - apesar de saber que algumas marcas eram definitivas, resistiriam a qualquer tentativa de disfarce.

O visitante se mostrou tão eufórico e agitado de início que causou certo repúdio na anfitriã. Ela, que sempre fora do silêncio, via seus cômodos repletos de som, de uma vibração inédita. À medida que o visitante percebeu que não precisava se fazer notar pelo barulho, foi que ela o notou. Não havia a necessidade de mencionar uma tempestade iminente ou o calor insuportável tendenciando minimizar os silêncios constrangedores aos quais ela sempre fugira. Os silêncios não mais eram constrangedores, não havia do que fugir, não havia motivo para preenchê-los de palavras e acabar por perder tudo o que neles era dito. E visto. E respirado. E sentido.

Parecia que o visitante já conhecia cada peça da casa, e cada canto da anfitriã, sem esta tê-la/ter-se ao menos apresentado a ele. Ela chegou a esquecer-se do pó que recobria a superfície, das flores da estação passada, dos retratos que permaneciam em pé. De súbito, as coisas haviam adquirido nova dimensão: o que antes deveria ser reformulado a tempo para receber qualquer visita, naquele dia não era o motivo que retia o visitante junto a ela, como bem o sabia. E ela nem mesmo esperava que ele, de repente, trouxesse à sua vista a mão que mantinha atrás das costas com os dedos envolvendo meia dúzia de flores vivas e perfumadas, ou que acrescentasse alguma espécie de valor material à desorganização da sua casa. O visitante ditava a ordem dentro dela, sem precisar de qualquer gesto concreto, mesmo a distância.

Após um tempo que não se sabe ao certo quanto foi (inclusive o tempo tornou-se relativo), a despedida fez-se promessa de reencontro:

- Até a próxima, até logo. - ela disse, deixando transparecer na voz um misto de felicidade, pela visita que acabara de receber, e tristeza, sabendo que essa mesma felicidade da presença seria motivo de saudade na ausência.

O visitante respondeu com um sorriso escondido e um olhar fixo no dela, caminhando inicialmente de costas para onde seguia para acompanhá-la por mais tempo enquanto se afastava, passos lentos e compassados, para então virar as costas a ela, até ela perdê-lo de vista em meio aos outros transeuntes.

Foi a primeira e única porta que ela abriu e não fechou após a despedida.

26.7.10

Por um arbítrio livre


Livre-arbítrio. Supostamente deveríamos ir e vir amparados pela segurança e liberdade que essa palavra evoca. Porém, com tantos valores e comportamentos questionáveis desse nosso tempo, feitos banais dada sua generalização, seria um perigo à própria raça humana termos livre-arbítrios completamente livres andando por aí. A parte ruim e injusta de todo esse emaranhado de livre-arbítrio reprimido são as vontades emudecidas não por representarem qualquer espécie de ameaça a outro ser, mas sim por ousarem contrariar as convenções pré-estabelecidas do que é certo e errado.

Existem padrões de comportamento que são indiscutíveis e assegurados por lei, devido à sua prática e principalmente à sua possível transgressão envolverem a vida de mais de um indivíduo, podendo colocá-la em risco. Porém, no que diz respeito à individualidade, a liberdade de escolha deveria prevalecer sobre as imposições sociais, desde que as conseqüências de tais escolhas não venham a ameaçar a própria integridade física e moral de quem as pratica.

No momento de tomar qualquer atitude para desvencilhar-se de um status quo infeliz, ainda que dentro dos "padrões", cuja origem já se perdeu e queda não se prevê, é preciso mais do que coragem: é preciso acreditar que vale a pena correr todos os riscos para ter seu desejo realizado. É nesse momento de hesitação que muitos infelizes permanecem infelizes, e passam a enxergar a felicidade como utopia, pertencente a uma realidade paralela, onde o acesso só não é restrito aos sonhos reprimidos, que poderão, enfim, brincar de serem possíveis.

Os infelizes não desistiram da felicidade, apenas têm medo do que podem vir a perder pelo caminho ao tentar encontrá-la. Não se deve confundir esse medo com uma covardia sem motivos. Na hora de pesar o que vale mais, a razão geralmente predomina sobre todo o resto, e acaba ditando o rumo a ser seguido. A felicidade, independentemente da razão, sempre tem um peso maior, e, justamente por pesar tanto, às vezes não se consegue carregá-la.

Apesar de todas as amarras e da correnteza contrária a ser enfrentada, lutemos pela nossa felicidade de maneira a torná-la cada vez mais palpável e da forma que menos nos exponha - julgamentos alheios não são encorajadores por natureza. Na pior das hipóteses, cada conflito nos preparará para o próximo, e conheceremos a nós mesmos como nunca. E, quem sabe, não encontremos, permeando esse autoconhecimento, aquilo que realmente estávamos procurando.

6.6.10

Passado x Presente x Futuro


Amparados pelas tecnologias que superam umas as outras a cada dia, encurtamos distâncias, suprimos nossa necessidade de socialização por algo que nos proporcione prazer, teoricamente, na mesma medida (quantos solitários mundo afora driblam a solidão com a companhia de um bichinho de estimação, ou ainda escondem-se atrás de uma tela de computador para poderem escancarar sua verdadeira personalidade, incompatível com a realidade a qual estão sujeitos?). Entretanto, apesar de rodeados por todo esse aparato tecnológico, continuamos insatisfeitos por ainda não terem inventado uma maquinaria que deixasse o passado e o futuro ao alcance das nossas mãos, assim como nos é, unicamente, o presente.

O passado. Aposto que todos, em algum momento da sua existência, quiseram ter acesso a esse baú de recordações, um tanto empoeirado, mas nem por isso menos valioso. Descontentes com o presente, agarramo-nos às nossas lembranças mais encantadoras. Geralmente recorremos à infância, onde tudo parecia tão puro e incorrompível. Os dias eram despretensiosos, por vezes curtos diante de tantas brincadeiras e disposição, encerrados com uma xícara de Nescau quente em frente à televisão. Perdoem-me os metropolitanos, oriundos de capitais, mas eu não troco a minha criação interiorana por um apartamento que limita possibilidades (e potencializa os desastres e puxões de orelha) e um playground no fundo do prédio, rodeado por cercas que remetem à prisão. Nada como um pé encardido de tanto correr descalço pelo pátio!

O futuro. Quantas vezes já convertemos um possível fracasso atual em sucesso futuro? Não que isso seja de todo mal, já que muitas vezes temos de apelar a projeções para aceitarmos o presente. O que eu questiono aqui (e me questiono com uma freqüência maior do que deveria) é o desejo de transpor etapas, de avançar alguns bons anos na linha do tempo, para um ponto em que se espera ter uma maior realização, tornando a felicidade uma promessa, nunca uma realidade. Seja qual for o motivo do nosso descontentamento presente, não é omitindo-o de nós mesmos que iremos transformá-lo em um futuro mais agradável. Somente questionando a nossa posição atual é que poderemos caminhar em direção a uma diferente.

O presente. Único meio de desenharmos um passado memorável e um futuro brilhante. Enquanto lamentamos, o tempo corre (e realmente parece correr muito mais depressa nessas ocasiões). Minutos de insatisfação tornam-se horas fatigantes, e, quando damos por nós, dias e meses afundados em mágoas, inseguranças e questionamentos instalam-se no nosso viver. Porém, quanto maior a queda, mais triunfante é o levantar-se para o mundo novamente.

O passado tem seu valor, porém... já passou! Quanto ao futuro, sofrer por antecipação ou deixar-se tomar pela ansiedade não farão com que ele se converta em presente mais rapidamente. Portanto, cuidemos bem do nosso único instrumento de transformação, o presente, para que ele seja uma excelente fonte de recordações e um caminho seguro para o destino que mais nos convenha.

31.5.10

Solidão: aprecie com moderação


A solidão não deve ser encarada como abandono ou, no outro extremo, auto-suficiência. Solidão é, acima de tudo, uma questão de autoconhecimento. Não que devamos ficar reclusos somente a fim de realizarmos uma pesquisa antropológica - não usemos a ciência como desculpa para uma introspecção patológica. Apenas saibamos usar a nosso favor as situações que nos foram impostas pelo destino (pelas quais, na maioria das vezes, somos os grandes responsáveis).

Apesar de achar que felicidade só existe se compartilhada, ter uma companhia não deve ser um pré-requisito para se viver. Momentos de solidão e recolhimento são necessários e importantíssimos para alcançarmos o autoconhecimento. Momentos solitários nos quais a nossa sinceridade apresenta-se mais sincera. Não escolhemos palavras, não coibimos gestos; libertamos nossas manias das convenções sociais, valorizamos a nossa individualidade. A quatro paredes e a sós, enfim, autênticos.

A falta de companhia não deve ser um obstáculo ou escusa para se deixar de ir ao cinema, ao teatro, à locadora, para se preparar uma comida gostosa, passar um café ou passear pelo parque em manhã ensolarada. Não devemos depositar a responsabilidade pela nossa felicidade integralmente nas outras pessoas. A nossa própria e única companhia deve ser, ao menos, suportável. Para isso, é indispensável prática, e muita coragem. Olhares piedosos ao adquirente de apenas um ingresso para uma sessão de cinema são os verdadeiros dignos de pena: esperam que os outros nos completem, quando já somos completos ao nosso modo. Quem não enxerga a sua completude, não conhece o próprio potencial, e acaba por se sub ou superestimar. Devemos buscar completudes semelhantes a que possuímos - a única coisa que os opostos atraem é desentendimento -, e fazer delas uma extensão da nossa, ampliando-a, não a completando.

A solidão, quando moderada, é altamente saudável, porém, não se recomenda seu uso indeterminado por possuir elevadas doses de amargura e acarretar rugas insuscetíveis de correção estética. Não tenhamos medo da solidão, mas sim de nos acostumarmos a uma vida inteira em sua única companhia.

17.5.10

Gigantes atados



Todos queremos ser grandes. Alguns, a ponto de serem notados pelos demais, outros, somente grande o suficiente para não se perderem de vista dentro de si mesmos. Assim que atingimos o degrau uma vez almejado, lançamos os olhos no seguinte, e no próximo... Não nos contentamos com a estabilidade, com a possibilidade de uma rotina estabelecida, seja ela mesquinha ou não. Simplesmente não nos contentamos. Ainda bem.

Todos queremos fazer algo grandioso. Deixar nosso nome rabiscado em algum cantinho de folha dessa história nada linear que se convencionou chamar existência. Alguns desejam ser autores da oitava maravilha, outros, somente fazer algo maravilhoso, digno de uma noite bem dormida ao se encontrar a paz que tanto se procurou, e que estava ali o tempo todo, ao alcance da nossa coragem.

Mas o que é que nos impede de desatar esses nós? De desfazer essas amarras invisíveis que nos prendem, quando proclamamos, em alto e bom tom, que somos livres?

Não somos nós quem levamos a vida. É a vida que nos leva. E um dia ela resolve não nos devolver mais, simples assim. Serão carregadas juntas todas as verdades tidas como absolutas, e que, de fato, não passavam de falsos moralismos, nos quais fomos doutrinados a acreditar, e, como se não bastasse, passá-los adiante, como uma canção que não se entende a letra, mas é entoada animadamente, em coro. E todas as amarras que ficaram por desfazer e os nós que ficaram por desatar, continuarão amarras e nós, com milhares de desejos mofados presos a si.

É esse o meu maior medo: não conseguir me desamarrar a tempo e deixar que mofem todos os sonhos que trago comigo. Eu vivo muita coisa bonita nos meus sonhos. Não preciso nem de travesseiro, nem de cama macia para fazer com que eles aflorem: posso muito bem sonhar de olhos abertos, remota a tudo e todos a minha volta. E odeio ser interrompida de súbito, sem que me desapegue aos pouquinhos do meu outro mundo para, então, voltar à realidade. Não sei se isso é bom ou ruim, o fato de sonhar acordada. Acho que ao abrir os olhos já deveria encarar meu sonho como realidade. Ao menos é o que se espera (esperam).

Eu gosto de aparentar segurança. Um andar convicto vale muito mais que a própria segurança. Guardo minha covardia embaixo da cama, para alimentá-la todos os dias antes de dormir. É ela quem me relembra os sorrisos e abraços a serem distribuídos e o caminho a ser seguido para que a mantenha latente, embora muito dominante nessa sua quiescência.

Por favor, não faça descaso da minha pouca idade ou falta de vivência: a vida não se restringe à soma de horas, dias, semanas, meses e anos ao currículo, mas deve-se também, e principalmente, à soma de algumas experiências que valem por uma vida inteira. Não que eu as tenha vivido todas - espero levar um bom tempo para que isso aconteça; espero é que aconteça... -, apenas gosto muito de palpitar, e, há pouco, tomei três xícaras de café.

10.4.10

Três parágrafos de drama puro e dispensável


O céu é dos mais azuis e não oferece nenhuma nuvem de resistência para a passagem dos raios de sol, que parecem intensificar-se ao anunciarem o final de semana. As sombras produzidas realçam texturas e formas esquecidas - inclusive as que deveriam assim permanecer (a escuridão é, por vezes, mais cômoda e agradável do que uma claridade tão reveladora e sincera). O vento frio que entra pela janela, resquício de uma semana de temperaturas atípicas ou prelúdio do inverno, enche o quarto de desconforto, uma angústia sem causa específica ou cura conhecida, mas que aflora sentimentos, dúvidas; angústia expressa em dedos inquietos a teclar e um balançar constante da perna cruzada, suspensa no ar frio.

Nem mesmo um dia aparentemente bonito, uma vida perfeita aos olhos de quem vê e um caminho que se diz promissor conseguem persuadir uma vontade louca de chorar. Compulsivamente ou baixinho, enrolando-se nas cobertas para abafar tanto sentimento nu que escorre em forma de lágrima, frágil à espreita de julgamentos e expectativas, extravasado diretamente do coração, reservatório pequeno pra tanta emoção. Convertem-se em lágrimas as palavras não ditas na hora exata, detentoras de proporções assombrosas quando silenciadas por tempo demais. Convertem-se em lágrimas as lembranças mais doces, que, ao escorrerem dos olhos e atingirem os lábios, percebe-se terem adquirido o sabor amargo da incompatibilidade, a ponto de tornarem-se uma espécie de utopia. Convertem-se em lágrimas os sonhos, um dia, menosprezados, os objetivos frustrados, as cordas do violão não dedilhadas, e as vocais, atrofiadas. A trajetória porosa e enrugada das lágrimas representando a imensa distância que separa quem, teoricamente, está próximo, assim como representa a igualmente imensa saudade que aproxima os distantes.

Depois de respingar tanta angústia na cama, limpa-se na manga da camiseta o restinho de sentimento que ainda umedece a face e respira-se fundo, como aquela primeira grande inspirada que nos trouxe à vida. Mesmo com a claridade diminuída e as sombras atenuadas, são elas que revelam os reais motivos de preocupação, os problemas merecedores de um choro torrencial, seguido de uma resolução à altura. Eternos insatisfeitos, egocêntricos por excelência, nossos olhos deveriam chorar menos, enxergar mais. Porém, além de insatisfeitos e egocêntricos, somos, principalmente, humanos, abrigando a maior das ambiguidades dentro de nós - racionais, quão dramáticos somos!

27.2.10

A tristeza


"Tristeza não tem fim / Felicidade, sim". A voz aveludada de Vinicius de Moraes, ao acariciar a alma através de notas musicais, por vezes mascara toda a dramaticidade incrustada nessa combinação de palavras. Serão, então, o sofrimento, a angústia, a incerteza e o desencontro eternos, ao passo em que a alegria, o amor, o sorriso e o reencontro têm prazo para se esgotarem?

A tristeza é tida como fonte de inspiração em vários campos da arte: escritores, compositores e pintores, entre outros, dizem-se muito mais aptos a criar quando impulsionados pelos sentimentos desencadeados por ela. Não que a felicidade não mereça ser escrita ou pintada, mas geralmente recorremos a métodos mais calorosos e eufóricos para demonstrarmos esse estado de espírito: tocamos o telefone para os amigos mais próximos (inclusive para aqueles nem tão próximos assim), ou até mesmo vamos transmitir pessoalmente a boa nova, motivo da felicidade recém adquirida. Afinal, dizem que esta só existe quando compartilhada.

Já a tristeza... A tristeza dispensa o compartilhamento para existir. Aliás, ela intensifica-se ao não ser compartilhada, e sim enclausurada dentro de nós, situação em que nunca seremos imparciais na sua análise. As sensações que a caracterizam assumem a dimensão de fios de lã, que, por si só, já são um emaranhado de tantos outros fios. À medida que vivemos, tecemos esses nossos sentimentos, enrolamo-los uns sobre os outros, a ponto de criarmos um novelo de emoções. Uma vez encontrada a ponta inicial e destacada do conjunto ao puxar-se com força, o novelo vai se desfazendo, rola como que tomado por vida própria, escorrega da poltrona e alcança o chão da sala, que se torna repleto de filetes de melancolia e mágoa. Esses sentimentos, aos poucos, impregnam o ar do ambiente, e inspiramos novamente uma dor que havia sido esquecida (ou ao menos se encontrava latente, quietinha). O novelo vai minguando, sumindo, tornando-se cada vez menor, revelando, enfim, sua ponta final, até se acabar em nada.

No chão, por fim, tanta coisa que não pode ser dita, tanto amor reprimido e sonho sufocado, inúmeras possibilidades tolhidas... tanta lã inerte. Choramos, exaltados ou em silêncio, porém resignados: o novelo, mesmo desfeito, será sempre a nossa bagagem. Nossas dores não existem sozinhas, não podem ser isoladas umas das outras, daí a impossibilidade de serem confessadas: não restariam ouvidos atentos ou alguma compaixão que resistisse a tamanha tormenta de sentimentos. É aí que recorremos à arte, mesmo que de forma paradoxal: palavras e pontuação, cores e traços, a nossa subjetividade na sua forma mais detalhada. Recolhemos a nossa bagagem, agora um pouco mais leve e inundada de lágrimas, e seguimos adiante.

Entretanto, por mais que a tristeza seja uma constante, podemos intercalá-la com doses de felicidade sincera. Não temos necessariamente de estar felizes o tempo todo – a vida sem os seus percalços a serem superados careceria de boa parte do seu encanto. Cabe a nós termos o bom senso de fazermos com que essa felicidade finita dure um pouquinho mais, achando graça no que é menosprezado pelos outros, sendo menos rígidos nas nossas exigências pessoais, e, por último, reconhecendo a nossa real tristeza e deixando de lado aquela inventada, que serve somente para pesar na bagagem. No final das contas, tenho de, assim como em outra ocasião, discordar de Vinicius (que ousadia!): tristeza é, sim, bonita, mas a felicidade que seja infinita.

11.2.10

O abrir dos olhos


Estou certa de que você já digeriu milhares de palavras a respeito do Coelhinho da Páscoa, do Papai Noel e da Fada dos Dentes. Que já temeu o Bicho-Papão - e certificou-se de que este não habitava a escuridão sob o seu colchão -, pensou que as nuvens fossem feitas de algodão e que o sol subia e descia todos os dias. O mais impressionante é que um dia você acreditou nisso tudo, nós acreditamos...

Inventaram tanta coisa, contaram-nos tantas "mentirinhas do bem", para depois, como um forte beliscão em meio ao sono tranquilo, abrirem nossos olhos, fazendo com que encaremos uma nova realidade que em nada remete à candura da anterior, única e indiscutível até então.

Os olhos abrem-se gradativamente, seguindo uma escala crescente de decepções. A primeira rajada de luz a banhar a retina decorre do nascimento do irmãozinho. Poxa, você achou que seria único! Que o abraço da sua mãe seria somente seu, que as brincadeiras do seu pai seriam somente para divertir você! Então, você ouve um choro esganiçado a ecoar pelos corredores e depara-se com a ideia de ter de dividir, inclusive ceder.

Página virada, o tal irmãozinho não te causa mais tanto aborrecimento: é chegada a hora de ir para a escola. Paralisado em frente à porta da sala de aula, um nó forma-se em sua garganta, e milhares (elas realmente parecem milhares, quiçá milhões) de cabecinhas o encaram do lado de dentro, numa sincronia de pernas inquietas a balançar e de olhos curiosos a piscar. E o pior: ninguém ao menos se dignou de lhe avisar que a sua mãe não poderia permanecer ao seu lado. Orgulho ferido e um choro torrencial engolido, você caminha, cambaleante e cabisbaixo, para o último lugar disponível na classe - aquele na fileira do meio, o seguinte ao quadro-negro. O tempo lhe mostrará que a escola é o melhor lugar para se fazer amigos e às vezes aprender alguma coisa das apostilas; tornar-se-á um baú de memórias intensas, cheias de vida, além de lhe abrir um pouquinho mais os olhos para essa nova realidade.

O primeiro dia de aula já foi esquecido, há muito superado, e as cabecinhas donas dos pares de pernas inquietas e dos olhos curiosos hoje são o que você chama de amigos. É ao encarar um desses olhos curiosos (as pernas inquietas enquadram-se em outra faixa etária) que você sente um friozinho na barriga indescritível, tem a impressão de ficar encharcado de suor e de enrubescer a face de um modo constrangedor. O seu coração bate numa velocidade inversamente proporcional a distância entre vocês. Faltam-lhe palavras, falta-lhe coragem. Mas palavras e coragem não faltaram ao Fulaninho, que agora passeia pelo parquinho com os dedos entrelaçados aos da mão que um dia você sonhou segurar. É a decepção amorosa na sua face mais ingênua e simples, mas não menos dolorosa e cruel.

A essas primeiras decepções, acrescentam-se ainda a descoberta da farsa do Coelhinho da Páscoa - nem por isso abre-se mão dos ovos de chocolate... -, da farsa do Papai Noel - "então era o meu papai o tempo todo?" - e da farsa da Fada dos Dentes - hoje a sua mãe tem ao menos um deles transformado em pingente, sacudindo em alguma de suas pulseiras ou colares. Seus pais também já lhe falaram que bicho-papão não existe - ainda que você continue pisando mansinho e apressado ao atravessar o escuro. A escola, por sua vez, encarregou-se de explicar a relação entre os estados físicos da água e as nuvens e, apesar da turma toda afirmar efusivamente que enxergava o sol se movimentar acima de suas cabeças, o sistema solar foi finalmente desvendado (ou simplesmente engoliu-se sem contestação tudo isso que dizem ser verdade e acaba-se aceitando). E seguem-se tantas outras decepções...

Quando damos por nós, estamos com os olhos completamente abertos, e aquela primeira realidade, onde imperavam as crenças ingênuas, é lembrada com descaso e um certo ar de superioridade, e censuramos a nós mesmos por termos acreditado em tais histórias. Uma pena essa nossa realidade adotada deixar-nos tão exaustos à noite, quando fechamos novamente os olhos, a ponto de não podermos ao menos sonhar com aquela realidade perdida.

4.2.10

Destino, o real onipotente?


des.ti.no sm 1 Encadeamento de fatos; fatalidade. 2 Fado, sorte. 3 Objetivo, fim.

Escapa à descrição do dicionário um significado não menos importante dessas três sílabas. Não é minha intenção, por mero prazer, discordar de qualquer editora, ou criar caso por não ter mais o que fazer (bom, talvez a segunda opção...). Enfim, o significado desprezado ao qual faço menção é o seguinte: o "destino" funciona também, para muitos indivíduos, como um grande depósito, um grande e onipotente depósito.

Quantos são os que depositam todas as suas esperanças no dito "destino"? Cansados de remar contra a corrente, entregam a responsabilidade de suas decisões, o peso de suas escolhas, inteiramente nas "mãos" do Destino. Isso mesmo, letra maiúscula, já que agora estamos falando de uma entidade, praticamente um ser supremo. É imensamente mais fácil aderir a essa doutrina, que nos faz marionetes da vontade Dele, desprovidos de livre-arbítrio, do que abandonar a inércia e confrontar o que é dado como certo, imutável. Assim, qualquer infelicidade que nos aconteça, qualquer reviravolta que nos pegue de surpresa estará dentro de um contexto, não terá sido nossa culpa ou consequência dos nossos atos.

Corajosos são os que não acreditam no Destino, e sim em destino. Acreditar em um destino pra si pressupõe lucidez para criticar a sua realidade, ousadia para traçá-lo, determinação para alcançá-lo e uma sabedoria imensa para conservar o que foi conquistado. Por isso é que é muito mais fácil entregar-se à crença de que já estamos pré-destinados à uma vida inteira sem ao menos termos vivido a maior parte dela...

Parece impossível, até mesmo incoerente falar dessas atitudes em prol do seu destino para com os 980 milhões de miseráveis em todo o mundo (dados de 2004), com renda individual diária abaixo de US$ 1. Entretanto, não foi simplesmente aceitando a sua realidade social, política e econômica que Nelson Mandela alterou a de tantas outras pessoas, ou ainda que Machado de Assis, nascido pobre e epilético, neto de escravos alforriados, sem frequentar regularmente a escola, tornou-se um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.

Apesar de considerar única cada situação, os exemplos anteriores só reforçam a teoria de que o nosso destino depende inteiramente de nós: temos livre-arbítrio para traçá-lo e alcançá-lo. Isso não exclui as crenças, a fé - sendo nossa força finita, precisamos de apoio nos momentos de fraqueza; apenas posiciona-nos como os verdadeiros escritores na nossa própria história.

1.1.10

Pelos próximos 365 dias


Pois é, 2010 abriu suas cortinas. No palco, milhares de possibilidades, promessas de grandes e pequenos feitos, desejos sinceros, tantas expectativas para os próximos 365 dias - não mais do que 365, pois não suportaríamos viver sem intermitências; precisamos estourar uns fogos, colorir o céu, e respirar (antes a cada um ano do que nunca).

Não falemos de 2009. O que passou, passou. Dizem que 2010 é o ano de Iemanjá. Com o perdão da Rainha do Mar, 2010 vai ser o meu ano, o nosso ano. Somos pessoas de sorte. Fomos agraciados com a oportunidade de podermos realizar tudo novamente, mas de um jeito diferente, do jeito que quisermos.

Que qualquer frustração anterior à nova data seja convertida em crescimento, em aprendizado que nos faça maiores. Que as vitórias de ontem nos incentivem a acreditarmos mais no nosso potencial, na nossa força - melhor do que mover montanhas, que ela nos mova sempre adiante, principalmente nos momentos em que as pernas ameaçarem cansaço. Que deixemos um pouco do ceticismo e da desconfiança de lado (e aqui aponto o dedo pra mim mesma) e passemos a valorizar mais quem está à nossa volta. Se não acreditarmos que ainda existem bons corações espalhados por aí, seremos tomados pela solidão e pelo rancor, e nem o mais doce dos beijos irá resistir a tanta amargura que de nossos lábios se fará sentir. Que sejamos felizes com as/nas nossas escolhas para não termos de conviver com o fantasma do arrependimento a nos rondar. E, por último, mas não menos importante: que reaprendamos o valor do respeito. Respeito por todos, por tudo. Iniciarmos mais uma década com notícias pesarosas nos jornais, catástrofes climáticas, disparidades colossais e tantas outras coisas que hoje nos atormentam seria mais que um retrocesso: seria um passo a mais rumo à nossa própria "aniquilação" (desculpem o tom mórbido - melhor pecar por excesso).

Aliás, algum palpite sobre quais serão os ícones da década de 10? O touro da Wall Street conseguirá conter o dragão vermelho da China? Qual a chance dos africanos, pobres e famintos, diante dessa briga de gigantes? 2010 lhes reserva um grande foco de atenção: a Copa do Mundo de Futebol - infelizmente, a primeira e única vez que muitos desviarão seus olhares para o continente africano. Em relação à política brasileira, brilha, brilha, estrelinha, que a tua hora de apagar está chegando... Espero. Cafés sempre cheiraram melhor do que qualquer palpite.

O ponteiro já está rodando...
Que 2010 seja lindo, e repleto de poesia.