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9.2.11

Desde que os tempos mudaram

Quatro e quinze da madrugada. Hoje esses números eram apenas a hora habitual de se perder o sono em plena quarta-feira, depois de não ter obtido sucesso na tentativa de manter os olhos fechados por muito tempo. Entretanto, esses mesmos números já tiveram outro significado. Coincidência, ironia ou uma brincadeira de mau gosto desses algarismos, eles faziam questão de ressurgir em intervalos regulares para não se deixarem esquecer, para a sua importância no passado não conseguir ser superada. Lá estavam eles, naquele número de telefone anotado às pressas no canto da folha e depois lido com uma surpresa que logo em seguida transformava-se em raiva. Eles também estavam a encará-la, com curvas de deboche e prepotência, diretamente da placa do automóvel parado a sua frente no congestionamento quilométrico ao qual tinha de se submeter diariamente. Nesse caso, não havia possibilidade alguma de fuga, então Mariana continuava a tomar o seu café em copo descartável e aumentava ainda mais o volume da música, a fim de que esta transcendesse o sentido da audição e tomasse por inteiro a sua visão, para que o “1504” a sua frente fosse visto como uma linda melodia, despido de lembranças e arrependimentos iniciados no dia quinze do mês quatro.

Quatro e vinte e dois. Mariana já havia preparado um chá e agora se encontrava em pé, em frente à janela da sala de estar do seu pequeno apartamento, admirando a cidade adormecida. Era inevitável não olhar logo abaixo, para a calçada, e imaginá-los caminhando sobre ela, mãos dadas, sorrisos a postos. Ou olhar para o pub quase em frente ao edifício em que reside e reconstituir as noites animadas que passaram sentados, bebendo, conversando, sozinhos ou com amigos, mãos atadas sobre o colo do outro. Esse era um dos maiores vazios que havia deixado com a sua ausência: a sua mão para segurar. Ela representava muito mais para Mariana do que uma convenção, do que um costume dos amantes. Quando Pedro segurava sua mão, ele segurava-a por inteiro. Ele representava segurança, uma sombra capaz de protegê-la da luz, uma luz capaz de mantê-la a salvo da escuridão. A caneca de porcelana cheia de chá aquecia sua mão, que a envolvia numa tentativa falha de suprir a sua necessidade de calor, mas de um calor que fosse vivo, de um calor que a fizesse viver novamente.

Essa invasão de pensamentos e lembranças era a deixa que o sono precisava para desaparecer de vez. Isso já vinha acontecendo há um bom tempo - desde que os tempos mudaram. Noites em claro, dias que não passavam de uma contagem regressiva de horas, minutos e segundos para chegar ao seu apartamento e enterrar-se na cama. Não rezava mais. Perdera esse costume ainda adolescente, apesar das súplicas de sua mãe católica. Não que não acreditasse em “algo maior”, denominado de diversas maneiras de acordo com cada religião de existe por aí. Esse era apenas um costume que havia ficado para trás, e que ao menos era seu: era algo que lhe fora ensinado quando Mariana ainda não havia construído seus próprios critérios de julgamento, época em que apenas se aceita o que é imposto, sem qualquer contestação. A decisão de não rezar não era certa ou errada, era sua, assim como as demais decisões em relação à sua vida. Mariana não rezava, preferia induzir sonhos. Quando deitava sua cabeça sobre o travesseiro macio, resgatava as melhores lembranças e tornava-as realidade, modificando-as sem pudor algum, de acordo com as suas vontades, usufruindo de uma liberdade que só possuía em sonho. Mariana fazia isso até os suspiros nostálgicos transformarem-se em uma respiração inaudível e ritmada, indicando que o sono chegara, arrebatando a indutora de sonhos para outra dimensão, sobre a qual ela não detinha poder algum.

Cinco para às cinco. Nem mesmo o melhor dos sonhos induzidos era capaz de despertar em Mariana o sono essa noite. Sentada no tapete da sala (em sua opinião, a peça mais aconchegante da casa), com as costas apoiadas contra o sofá, a caneca, agora fria, guardando um resto de chá também frio, abraçada pelas suas mãos, olhos abertos na escuridão do ambiente, quebrada apelas pela luz que emanava da cozinha, a qual havia deixado acesa. Mariana dizia não ter arrependimentos, não guardar ressentimentos, mas por vezes imaginava-se, em um ponto do passado, mudando alguma atitude sua, escolhendo outro caminho que não o percorrido. Presumia se finais alternativos seriam possíveis a partir disso. De súbito, fechava os olhos com força, balançava rapidamente a cabeça de um lado para o outro, como se isso bastasse para apagar todos esses pensamentos, todas essas hipóteses que a corroíam por dentro cada vez que emergiam de um lugar dentro de si, lugar que ao menos conhecia, o que impossibilitava que ela o destruísse, como bem o queria.

“Aquele desgraçado poderia ao menos ter me olhado nos olhos uma última vez antes de desviá-los para sempre dos meus”. Era isso que mais a machucava, era nisso que perdia horas de sono pensando. Os olhos de Pedro eram a coisa mais linda que os seus já haviam visto. Eram olhos que acalmariam tempestades somente ao fitá-las, mudariam o sentido do vento somente com um piscar, iluminariam o mundo com o seu brilho raro. Quando Pedro a olhava nos olhos, era como se aquela troca de olhares fosse a única coisa que existisse, como se aquele momento fosse o único indispensável, como se aqueles olhos fossem a única maneira de Mariana encontrar a sua paz. Não eram olhos grandes, mas eram grandes o suficiente para que Mariana se perdesse dento deles com uma facilidade maior do que sempre gostara. Odiava o modo como ficava vulnerável perto de Pedro, como ele a fazia perder os pudores, como ele desnorteava seus critérios. E ao mesmo tempo amava tudo isso. Amava sentir-se vulnerável ao seu lado, capaz de amar, de ter seu coração abalado por um simples suspiro que saísse de seus lábios. Ela, que sempre se julgou intocável, inabalável, indestrutível, adorava admitir que estivera errada durante muito tempo. Mariana não era intocável, apenas ninguém a havia tocado como Pedro o fizera.

Cinco e quarenta. Estariam dormindo juntos, como um só. Mariana estaria sentindo a pele de Pedro na sua, Pedro confundiria a sua respiração com a de Mariana. As pernas entrelaçadas representariam um laço ainda maior, que supunham ser incapaz de se desfazer. O amor não deixaria espaço para pesadelos. O sonho já foi real, e Mariana só percebeu isso depois de muito tempo - “depois que os tempos mudaram”. Mariana levantou-se, com um ar de apatia e resignação, dirigiu-se à cozinha, deixou a caneca sobre a pia, apagou as luzes, e foi tateando no escuro até seu quarto. Após deitar a cabeça no travesseiro, ao menos tentou induzir sonhos: o que ela queria era que os tempos não tivessem mudado tanto assim.