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27.2.10

A tristeza


"Tristeza não tem fim / Felicidade, sim". A voz aveludada de Vinicius de Moraes, ao acariciar a alma através de notas musicais, por vezes mascara toda a dramaticidade incrustada nessa combinação de palavras. Serão, então, o sofrimento, a angústia, a incerteza e o desencontro eternos, ao passo em que a alegria, o amor, o sorriso e o reencontro têm prazo para se esgotarem?

A tristeza é tida como fonte de inspiração em vários campos da arte: escritores, compositores e pintores, entre outros, dizem-se muito mais aptos a criar quando impulsionados pelos sentimentos desencadeados por ela. Não que a felicidade não mereça ser escrita ou pintada, mas geralmente recorremos a métodos mais calorosos e eufóricos para demonstrarmos esse estado de espírito: tocamos o telefone para os amigos mais próximos (inclusive para aqueles nem tão próximos assim), ou até mesmo vamos transmitir pessoalmente a boa nova, motivo da felicidade recém adquirida. Afinal, dizem que esta só existe quando compartilhada.

Já a tristeza... A tristeza dispensa o compartilhamento para existir. Aliás, ela intensifica-se ao não ser compartilhada, e sim enclausurada dentro de nós, situação em que nunca seremos imparciais na sua análise. As sensações que a caracterizam assumem a dimensão de fios de lã, que, por si só, já são um emaranhado de tantos outros fios. À medida que vivemos, tecemos esses nossos sentimentos, enrolamo-los uns sobre os outros, a ponto de criarmos um novelo de emoções. Uma vez encontrada a ponta inicial e destacada do conjunto ao puxar-se com força, o novelo vai se desfazendo, rola como que tomado por vida própria, escorrega da poltrona e alcança o chão da sala, que se torna repleto de filetes de melancolia e mágoa. Esses sentimentos, aos poucos, impregnam o ar do ambiente, e inspiramos novamente uma dor que havia sido esquecida (ou ao menos se encontrava latente, quietinha). O novelo vai minguando, sumindo, tornando-se cada vez menor, revelando, enfim, sua ponta final, até se acabar em nada.

No chão, por fim, tanta coisa que não pode ser dita, tanto amor reprimido e sonho sufocado, inúmeras possibilidades tolhidas... tanta lã inerte. Choramos, exaltados ou em silêncio, porém resignados: o novelo, mesmo desfeito, será sempre a nossa bagagem. Nossas dores não existem sozinhas, não podem ser isoladas umas das outras, daí a impossibilidade de serem confessadas: não restariam ouvidos atentos ou alguma compaixão que resistisse a tamanha tormenta de sentimentos. É aí que recorremos à arte, mesmo que de forma paradoxal: palavras e pontuação, cores e traços, a nossa subjetividade na sua forma mais detalhada. Recolhemos a nossa bagagem, agora um pouco mais leve e inundada de lágrimas, e seguimos adiante.

Entretanto, por mais que a tristeza seja uma constante, podemos intercalá-la com doses de felicidade sincera. Não temos necessariamente de estar felizes o tempo todo – a vida sem os seus percalços a serem superados careceria de boa parte do seu encanto. Cabe a nós termos o bom senso de fazermos com que essa felicidade finita dure um pouquinho mais, achando graça no que é menosprezado pelos outros, sendo menos rígidos nas nossas exigências pessoais, e, por último, reconhecendo a nossa real tristeza e deixando de lado aquela inventada, que serve somente para pesar na bagagem. No final das contas, tenho de, assim como em outra ocasião, discordar de Vinicius (que ousadia!): tristeza é, sim, bonita, mas a felicidade que seja infinita.

11.2.10

O abrir dos olhos


Estou certa de que você já digeriu milhares de palavras a respeito do Coelhinho da Páscoa, do Papai Noel e da Fada dos Dentes. Que já temeu o Bicho-Papão - e certificou-se de que este não habitava a escuridão sob o seu colchão -, pensou que as nuvens fossem feitas de algodão e que o sol subia e descia todos os dias. O mais impressionante é que um dia você acreditou nisso tudo, nós acreditamos...

Inventaram tanta coisa, contaram-nos tantas "mentirinhas do bem", para depois, como um forte beliscão em meio ao sono tranquilo, abrirem nossos olhos, fazendo com que encaremos uma nova realidade que em nada remete à candura da anterior, única e indiscutível até então.

Os olhos abrem-se gradativamente, seguindo uma escala crescente de decepções. A primeira rajada de luz a banhar a retina decorre do nascimento do irmãozinho. Poxa, você achou que seria único! Que o abraço da sua mãe seria somente seu, que as brincadeiras do seu pai seriam somente para divertir você! Então, você ouve um choro esganiçado a ecoar pelos corredores e depara-se com a ideia de ter de dividir, inclusive ceder.

Página virada, o tal irmãozinho não te causa mais tanto aborrecimento: é chegada a hora de ir para a escola. Paralisado em frente à porta da sala de aula, um nó forma-se em sua garganta, e milhares (elas realmente parecem milhares, quiçá milhões) de cabecinhas o encaram do lado de dentro, numa sincronia de pernas inquietas a balançar e de olhos curiosos a piscar. E o pior: ninguém ao menos se dignou de lhe avisar que a sua mãe não poderia permanecer ao seu lado. Orgulho ferido e um choro torrencial engolido, você caminha, cambaleante e cabisbaixo, para o último lugar disponível na classe - aquele na fileira do meio, o seguinte ao quadro-negro. O tempo lhe mostrará que a escola é o melhor lugar para se fazer amigos e às vezes aprender alguma coisa das apostilas; tornar-se-á um baú de memórias intensas, cheias de vida, além de lhe abrir um pouquinho mais os olhos para essa nova realidade.

O primeiro dia de aula já foi esquecido, há muito superado, e as cabecinhas donas dos pares de pernas inquietas e dos olhos curiosos hoje são o que você chama de amigos. É ao encarar um desses olhos curiosos (as pernas inquietas enquadram-se em outra faixa etária) que você sente um friozinho na barriga indescritível, tem a impressão de ficar encharcado de suor e de enrubescer a face de um modo constrangedor. O seu coração bate numa velocidade inversamente proporcional a distância entre vocês. Faltam-lhe palavras, falta-lhe coragem. Mas palavras e coragem não faltaram ao Fulaninho, que agora passeia pelo parquinho com os dedos entrelaçados aos da mão que um dia você sonhou segurar. É a decepção amorosa na sua face mais ingênua e simples, mas não menos dolorosa e cruel.

A essas primeiras decepções, acrescentam-se ainda a descoberta da farsa do Coelhinho da Páscoa - nem por isso abre-se mão dos ovos de chocolate... -, da farsa do Papai Noel - "então era o meu papai o tempo todo?" - e da farsa da Fada dos Dentes - hoje a sua mãe tem ao menos um deles transformado em pingente, sacudindo em alguma de suas pulseiras ou colares. Seus pais também já lhe falaram que bicho-papão não existe - ainda que você continue pisando mansinho e apressado ao atravessar o escuro. A escola, por sua vez, encarregou-se de explicar a relação entre os estados físicos da água e as nuvens e, apesar da turma toda afirmar efusivamente que enxergava o sol se movimentar acima de suas cabeças, o sistema solar foi finalmente desvendado (ou simplesmente engoliu-se sem contestação tudo isso que dizem ser verdade e acaba-se aceitando). E seguem-se tantas outras decepções...

Quando damos por nós, estamos com os olhos completamente abertos, e aquela primeira realidade, onde imperavam as crenças ingênuas, é lembrada com descaso e um certo ar de superioridade, e censuramos a nós mesmos por termos acreditado em tais histórias. Uma pena essa nossa realidade adotada deixar-nos tão exaustos à noite, quando fechamos novamente os olhos, a ponto de não podermos ao menos sonhar com aquela realidade perdida.

4.2.10

Destino, o real onipotente?


des.ti.no sm 1 Encadeamento de fatos; fatalidade. 2 Fado, sorte. 3 Objetivo, fim.

Escapa à descrição do dicionário um significado não menos importante dessas três sílabas. Não é minha intenção, por mero prazer, discordar de qualquer editora, ou criar caso por não ter mais o que fazer (bom, talvez a segunda opção...). Enfim, o significado desprezado ao qual faço menção é o seguinte: o "destino" funciona também, para muitos indivíduos, como um grande depósito, um grande e onipotente depósito.

Quantos são os que depositam todas as suas esperanças no dito "destino"? Cansados de remar contra a corrente, entregam a responsabilidade de suas decisões, o peso de suas escolhas, inteiramente nas "mãos" do Destino. Isso mesmo, letra maiúscula, já que agora estamos falando de uma entidade, praticamente um ser supremo. É imensamente mais fácil aderir a essa doutrina, que nos faz marionetes da vontade Dele, desprovidos de livre-arbítrio, do que abandonar a inércia e confrontar o que é dado como certo, imutável. Assim, qualquer infelicidade que nos aconteça, qualquer reviravolta que nos pegue de surpresa estará dentro de um contexto, não terá sido nossa culpa ou consequência dos nossos atos.

Corajosos são os que não acreditam no Destino, e sim em destino. Acreditar em um destino pra si pressupõe lucidez para criticar a sua realidade, ousadia para traçá-lo, determinação para alcançá-lo e uma sabedoria imensa para conservar o que foi conquistado. Por isso é que é muito mais fácil entregar-se à crença de que já estamos pré-destinados à uma vida inteira sem ao menos termos vivido a maior parte dela...

Parece impossível, até mesmo incoerente falar dessas atitudes em prol do seu destino para com os 980 milhões de miseráveis em todo o mundo (dados de 2004), com renda individual diária abaixo de US$ 1. Entretanto, não foi simplesmente aceitando a sua realidade social, política e econômica que Nelson Mandela alterou a de tantas outras pessoas, ou ainda que Machado de Assis, nascido pobre e epilético, neto de escravos alforriados, sem frequentar regularmente a escola, tornou-se um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.

Apesar de considerar única cada situação, os exemplos anteriores só reforçam a teoria de que o nosso destino depende inteiramente de nós: temos livre-arbítrio para traçá-lo e alcançá-lo. Isso não exclui as crenças, a fé - sendo nossa força finita, precisamos de apoio nos momentos de fraqueza; apenas posiciona-nos como os verdadeiros escritores na nossa própria história.