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29.7.09

Reles Imensidão

É a tua infinitude que te engrandece, mas também te aprisiona, te cerca de limites e impossibilidades. Essa imensidão te liberta do supérfluo e da mesquinhez, mas não te livra nunca do murmurar inquietante da tua consciência. TEC. TEC. TEC.

A hipocrisia fede. Esse cheiro te afeta, penetra teus poros e invade cada célula, fazendo germinar essa sensação de asco e desconforto que permeia tuas palavras e expressões. Perdoa minha ignorância, ser tão insignificante. És cristalino e inodoro, mas aqui fede muito.

Sinto-me entorpecer, não compartilho da tua amplidão. Perdoa minha finitude. Mas sei que a invejas a contragosto, apesar de toda sua podridão. É a tua mesma imensidão, que te engrandece e te aprisiona, que também te condiciona à solidão. Do alto da tua magnitude não vês ninguém como tu, e ninguém daqui te vê por inteiro; não entendes essa falsa e morna felicidade, interpretada com tanta veemência que se transforma em verdade absoluta e incontestável, ao mesmo tempo que não és compreendido por ninguém, ninguém..

És infinito, impossível de mensurar, quanto mais de se admirar. Contrasto com a tua vastidão, soberanas são minhas fraquezas e vulnerabilidades. Caminho sobre pedras falsas, circundada por flores artificiais exalando fragrâncias ainda mais sintéticas, que encobrem o cheiro oculto de tudo que finda.

15.7.09

O Espetáculo Oculto

Já se aproximava outra noite iluminada. Ela se fazia sentir não pelo clarão da iluminação artificial exagerada, numa fusão dae cores ofuscante, nem pelas frestinhas de luz que emanavam da negritude do céu; menos ainda pelo cheirinho de pipoca recém-estourada que começava a tomar conta do ar ou pela agitação usual dos bastidores em meio aos preparativos para mais um espetáculo. Do isolamento de seu trailer, que custava a chamar de lar, Arlindo sentia a noite propagar-se em som. No início, tímidas tentativas de conversa, interrompidas, hora e outra, por tons mais agudos e cheios de desenvoltura, que tomavam a forma de minúsculos corpos infantis. Passados alguns minutos, não mais se distinguia som algum, já que tudo se fazia som. Era assim, embalada em gritaria, choros e risadas, que outra noite iluminada adentrava no trailer de Arlindo

Para não disseminar conclusões precipitadas, essa mania incessante de tentar encontrar significado em tudo e preencher as reticências, deixo de lado a noite para me focar em uma escuridão ainda maior, Arlindo. Ou Palhaço Lindo. Durante o espetáculo de felicidade inventada, este; no espetáculo da realidade sem brilho e holofotes, aquele. Dos cinquenta e seis anos, delineados em cada ruga, aparente ou insinuada, foram vinte e quatro sob tinta, nariz vermelho e peruca. Desiludiu-se ao viver conforme os preceitos de uma sociedade hipócrita e mesquinha, que cobra deveres sem ao menos assegurar direitos e imprime valor (numérico, longe de sentimental) a qualquer substantivo. Não se excluem os abstratos, já que para se ter atenção, paga-se a um psicólogo qualquer para ouvir lamentações e incorporar uma relação de afeto que não existe; ou ainda, para se recuperar a beleza de outrora, paga-se a um bom cirurgião. Tudo muito metódico, programado para nunca deixar de funcionar. Tudo taxado de valor, e ao mesmo tempo sem valor algum. Mas o que de fato pintara seu o rosto e presenteara-lhe com um nariz de palhaço, literalmente, fora ter de pagar por envelhecer, para receber uma esmola quando não mais produzir e desligar-se da multidão que ajuda a girar essa engrenagem assustadora. Pois para se envelhecer, assim como para morrer, não basta estar vivo? Arlindo deveria pagar por ter nascido, como se respirar já não fosse um fardo suficiente

No picadeiro, virava Lindo, Palhaço Lindo. De fato, faltava-lhe o ar. Arrancar sorrisos dos abismos mais profundos e previamente inalcançados não lhe enchia em demasiado o bolso de dinheiro e a barriga de gostosuras, mas alimentava muito mais que o maior dos banquetes. Espantou-se com o primeiro choro desencadeado pelas suas expressões entusiasmadas e moldadas em delicadas pinceladas de tinta. Teria sido muito efusivo? Exagerara nos gestos e brincadeiras? Mas a trupe, percebendo que o palhaço recriminava-se em silêncio, apontou-lhe a naturalidade do ocorrido, afastando a incerteza que tanto lhe atormentava. Gargalhadas ou lágrimas, ao menos transcendera o grande temor que reside por trás de toda aparente confiança: a indiferença.

Fora entre os integrantes da trupe que se revelou A Malabarista. Com a mesma habilidade demonstrada ao ter total controle sobre as bolinhas que cortavam o ar, atingiam o ápice e mergulhavam de encontro ao próximo impulso, fez, do coração de Arlindo, malabar. Perdido entre seus dedos compridos e sua pele macia, desafiou a gravidade ao ser impulsionado ao ápice do amor, deleitando-se em prazeres e encantamentos sem precisar esconder-se sob uma fantasia.

Pode-se até desconsiderar o momento seguinte ao que está sendo vivido, como pretexto para ignorar as consequências e desatar-se de responsabilidades, mas ele é tão inevitável quanto a queda de uma bolinha que atingiu a altura máxima e cansou de lutar contra a gravidade. E foi assim, como uma peça de seu número circense, que Arlindo foi caindo, vendo-se cada vez menos iluminado pela luz que escapava dos olhos d’A Malabarista, escorregando por entre seus dedos compridos, súbita e propositalmente abertos para não apanhá-lo.

Às multitonalidades da sua caracterização, vinha agora juntar-se o branco dos fios de cabelo. A voz, antes emitida sem esforço e com muita espontaneidade, encobria-se numa rouquidão crescente e amedrontadora. As luzes que iluminam tudo em volta já não têm o mesmo brilho, a pipoca perdeu seu sabor em alguma parafernália moderna. Os tempos mudaram, a geração que hoje senta na plateia, também. As risadas soam ensaiadas e uniformes, uma cópia destoante e barata do que um dia foi um verdadeiro espetáculo. Mas são elas que anunciam outra noite iluminada. É hora de Arlindo não mais ter ar.

1.7.09

Entre as badaladas do tempo



Quanto tempo terá de passar
Quantas chegadas e partidas
Para se fazer amar,
Amar sem promessas descumpridas?

Quanta vida há de se viver
Antes de vivermos somente a morrer?
Morrer de amor, morrer de felicidade
Morrendo eternamente de saudade.

E a semente que ficou por plantar
Assim como toda declaração contida
Seria flor e fruto, não faltasse regar
Aos poucos secou e foi esquecida.

Muito - e sempre - deseja-se fugir
Sem pretensões para não se despedir
E em tal refúgio, real ou inventado,
O encanto retorna ao viver desamparado.

E nesse respirar, e nesse digerir
As horas, quietinhas, não se fazem sentir.
Roubam momentos sem piedade
Para trancafiá-los na posteridade.

Não se levam sorrisos, não se levam opressões,
Não se leva riqueza, nem as realizações.
Já no estertor, despedindo-se da realidade
Nem ao menos quer-se levar, apenas deixar: deixar uma grande saudade.