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11.2.10

O abrir dos olhos


Estou certa de que você já digeriu milhares de palavras a respeito do Coelhinho da Páscoa, do Papai Noel e da Fada dos Dentes. Que já temeu o Bicho-Papão - e certificou-se de que este não habitava a escuridão sob o seu colchão -, pensou que as nuvens fossem feitas de algodão e que o sol subia e descia todos os dias. O mais impressionante é que um dia você acreditou nisso tudo, nós acreditamos...

Inventaram tanta coisa, contaram-nos tantas "mentirinhas do bem", para depois, como um forte beliscão em meio ao sono tranquilo, abrirem nossos olhos, fazendo com que encaremos uma nova realidade que em nada remete à candura da anterior, única e indiscutível até então.

Os olhos abrem-se gradativamente, seguindo uma escala crescente de decepções. A primeira rajada de luz a banhar a retina decorre do nascimento do irmãozinho. Poxa, você achou que seria único! Que o abraço da sua mãe seria somente seu, que as brincadeiras do seu pai seriam somente para divertir você! Então, você ouve um choro esganiçado a ecoar pelos corredores e depara-se com a ideia de ter de dividir, inclusive ceder.

Página virada, o tal irmãozinho não te causa mais tanto aborrecimento: é chegada a hora de ir para a escola. Paralisado em frente à porta da sala de aula, um nó forma-se em sua garganta, e milhares (elas realmente parecem milhares, quiçá milhões) de cabecinhas o encaram do lado de dentro, numa sincronia de pernas inquietas a balançar e de olhos curiosos a piscar. E o pior: ninguém ao menos se dignou de lhe avisar que a sua mãe não poderia permanecer ao seu lado. Orgulho ferido e um choro torrencial engolido, você caminha, cambaleante e cabisbaixo, para o último lugar disponível na classe - aquele na fileira do meio, o seguinte ao quadro-negro. O tempo lhe mostrará que a escola é o melhor lugar para se fazer amigos e às vezes aprender alguma coisa das apostilas; tornar-se-á um baú de memórias intensas, cheias de vida, além de lhe abrir um pouquinho mais os olhos para essa nova realidade.

O primeiro dia de aula já foi esquecido, há muito superado, e as cabecinhas donas dos pares de pernas inquietas e dos olhos curiosos hoje são o que você chama de amigos. É ao encarar um desses olhos curiosos (as pernas inquietas enquadram-se em outra faixa etária) que você sente um friozinho na barriga indescritível, tem a impressão de ficar encharcado de suor e de enrubescer a face de um modo constrangedor. O seu coração bate numa velocidade inversamente proporcional a distância entre vocês. Faltam-lhe palavras, falta-lhe coragem. Mas palavras e coragem não faltaram ao Fulaninho, que agora passeia pelo parquinho com os dedos entrelaçados aos da mão que um dia você sonhou segurar. É a decepção amorosa na sua face mais ingênua e simples, mas não menos dolorosa e cruel.

A essas primeiras decepções, acrescentam-se ainda a descoberta da farsa do Coelhinho da Páscoa - nem por isso abre-se mão dos ovos de chocolate... -, da farsa do Papai Noel - "então era o meu papai o tempo todo?" - e da farsa da Fada dos Dentes - hoje a sua mãe tem ao menos um deles transformado em pingente, sacudindo em alguma de suas pulseiras ou colares. Seus pais também já lhe falaram que bicho-papão não existe - ainda que você continue pisando mansinho e apressado ao atravessar o escuro. A escola, por sua vez, encarregou-se de explicar a relação entre os estados físicos da água e as nuvens e, apesar da turma toda afirmar efusivamente que enxergava o sol se movimentar acima de suas cabeças, o sistema solar foi finalmente desvendado (ou simplesmente engoliu-se sem contestação tudo isso que dizem ser verdade e acaba-se aceitando). E seguem-se tantas outras decepções...

Quando damos por nós, estamos com os olhos completamente abertos, e aquela primeira realidade, onde imperavam as crenças ingênuas, é lembrada com descaso e um certo ar de superioridade, e censuramos a nós mesmos por termos acreditado em tais histórias. Uma pena essa nossa realidade adotada deixar-nos tão exaustos à noite, quando fechamos novamente os olhos, a ponto de não podermos ao menos sonhar com aquela realidade perdida.

7 comentários:

Larissa Damian Trevisan disse...

Já tinha passado várias vezes pelo meu pensamento vir aqui ler o que tens escrito, mas somente hoje isso aconteceu.
Ok Lu, eu já sabia que escrevia muito bem, mas hoje percebo que escreves melhor do que eu sabia.
Parabéns guria, se expressar assim é tão bom, não ficar na mesmice do tradicional, palavras e pensamentos comuns e "normais".
Agora serei assídua fã do blog

Anônimo disse...

lindoo!

Unknown disse...

Olha, minha veterana, vi teu blog nas atualizações e fiquei curioso.
Meu veredicto: muito bom! :D
Consegues expressar de uma maneira clara os seus pensamentos e opiniões.

Sobre esse último, acho que se chama crescimento, amadurecimento, e com ele ganha-se como perde-se muita coisa, inclusive a inocência e a ingenuidade.
;)

João Nunes Junior disse...

Já estou até com vergonha de tanto elogiar as tuas palavras, moça que eu nem conheço, mas que já tem a minha admiração!

Beijos...

primo disse...

(as pernas inquietas enquadram-se em outra faixa etária)

hahahaha

Lu! Demais!

Unknown disse...

Lu... surpreendente em!!! adorei.. nao sabia que era tu que escrevia. vou passar usufruir de seus palpites! bjos

Unknown disse...

Bah! Baita texto, um dos melhores que eu vi por aqui senão O melhor! Esse jogo de palavras, ou a sacadinha da "faixa etária", top 5 pelo menos né?
Só meio deprê, porém daí tu muda tudo de lugar no outro do dia 27/02.

Não vou me estender muito senão vai parecer que eu sou um mero puxa-saco. Da próxima vez eu xingo mais tá, pode deixar!

(Mais de mês sem atualizações hein... Pronto, xinguei!)