Não era dia de visitas, nunca havia sido. Ela não costumava manter a casa organizada esperando que estas aparecessem, nem tinha o hábito de organizar a si própria para receber qualquer estranho ou conhecido. E ela o fazia de maneira inconsciente.
Depois de já ter organizado a sala tantas vezes, tirado o pó que encobria tanta coisa - que talvez devesse ter permanecido encoberta, por fim -, guardado retratos antigos na esperança cega de que ocultar memórias fosse igualmente simples, depois de ter comprado flores com novos aromas, tapetes com novas texturas e quadros com paisagens renovadas, ela percebeu que cada transformação trazia, como que atrelada à mão, várias invenções consigo. Invenções de desculpas, outro compromisso qualquer, com pessoas da mesma forma inventadas. Inventando para si própria, desde o princípio, um motivo que justificasse a visita e uma possível continuidade dela. Afinal, o sofá era de veludo nobre, as paredes eram claras, e a geladeira sempre estivera farta: não haveria motivos para o visitante recusar um próximo convite.
Mas o convite não era refeito. Ela não queria receber novamente o visitante. Não que a visita fosse de todo o mal. Ela sabia disfarçar o seu lado antissocial quando bem convinha - procurava manter-se sempre bem informada quanto às condições climáticas, já que conversar sobre o tempo era um remédio deveras eficaz contra silêncios constrangedores. O problema dela não estava em encantar, mas em ser encantada.
Foi justamente num dia de sala desorganizada, com o pó encobrindo cantos e retratos antigos, flores murchas, tapete velho e quadros vazios que ela recebeu um novo e inesperado visitante. Fosse esperado, não o receberia naquelas condições, com tais roupas, o cabelo por arrumar, a pele sem maquiagem nenhuma - apesar de saber que algumas marcas eram definitivas, resistiriam a qualquer tentativa de disfarce.
O visitante se mostrou tão eufórico e agitado de início que causou certo repúdio na anfitriã. Ela, que sempre fora do silêncio, via seus cômodos repletos de som, de uma vibração inédita. À medida que o visitante percebeu que não precisava se fazer notar pelo barulho, foi que ela o notou. Não havia a necessidade de mencionar uma tempestade iminente ou o calor insuportável tendenciando minimizar os silêncios constrangedores aos quais ela sempre fugira. Os silêncios não mais eram constrangedores, não havia do que fugir, não havia motivo para preenchê-los de palavras e acabar por perder tudo o que neles era dito. E visto. E respirado. E sentido.
Parecia que o visitante já conhecia cada peça da casa, e cada canto da anfitriã, sem esta tê-la/ter-se ao menos apresentado a ele. Ela chegou a esquecer-se do pó que recobria a superfície, das flores da estação passada, dos retratos que permaneciam em pé. De súbito, as coisas haviam adquirido nova dimensão: o que antes deveria ser reformulado a tempo para receber qualquer visita, naquele dia não era o motivo que retia o visitante junto a ela, como bem o sabia. E ela nem mesmo esperava que ele, de repente, trouxesse à sua vista a mão que mantinha atrás das costas com os dedos envolvendo meia dúzia de flores vivas e perfumadas, ou que acrescentasse alguma espécie de valor material à desorganização da sua casa. O visitante ditava a ordem dentro dela, sem precisar de qualquer gesto concreto, mesmo a distância.
Após um tempo que não se sabe ao certo quanto foi (inclusive o tempo tornou-se relativo), a despedida fez-se promessa de reencontro:
- Até a próxima, até logo. - ela disse, deixando transparecer na voz um misto de felicidade, pela visita que acabara de receber, e tristeza, sabendo que essa mesma felicidade da presença seria motivo de saudade na ausência.
Depois de já ter organizado a sala tantas vezes, tirado o pó que encobria tanta coisa - que talvez devesse ter permanecido encoberta, por fim -, guardado retratos antigos na esperança cega de que ocultar memórias fosse igualmente simples, depois de ter comprado flores com novos aromas, tapetes com novas texturas e quadros com paisagens renovadas, ela percebeu que cada transformação trazia, como que atrelada à mão, várias invenções consigo. Invenções de desculpas, outro compromisso qualquer, com pessoas da mesma forma inventadas. Inventando para si própria, desde o princípio, um motivo que justificasse a visita e uma possível continuidade dela. Afinal, o sofá era de veludo nobre, as paredes eram claras, e a geladeira sempre estivera farta: não haveria motivos para o visitante recusar um próximo convite.
Mas o convite não era refeito. Ela não queria receber novamente o visitante. Não que a visita fosse de todo o mal. Ela sabia disfarçar o seu lado antissocial quando bem convinha - procurava manter-se sempre bem informada quanto às condições climáticas, já que conversar sobre o tempo era um remédio deveras eficaz contra silêncios constrangedores. O problema dela não estava em encantar, mas em ser encantada.
Foi justamente num dia de sala desorganizada, com o pó encobrindo cantos e retratos antigos, flores murchas, tapete velho e quadros vazios que ela recebeu um novo e inesperado visitante. Fosse esperado, não o receberia naquelas condições, com tais roupas, o cabelo por arrumar, a pele sem maquiagem nenhuma - apesar de saber que algumas marcas eram definitivas, resistiriam a qualquer tentativa de disfarce.
O visitante se mostrou tão eufórico e agitado de início que causou certo repúdio na anfitriã. Ela, que sempre fora do silêncio, via seus cômodos repletos de som, de uma vibração inédita. À medida que o visitante percebeu que não precisava se fazer notar pelo barulho, foi que ela o notou. Não havia a necessidade de mencionar uma tempestade iminente ou o calor insuportável tendenciando minimizar os silêncios constrangedores aos quais ela sempre fugira. Os silêncios não mais eram constrangedores, não havia do que fugir, não havia motivo para preenchê-los de palavras e acabar por perder tudo o que neles era dito. E visto. E respirado. E sentido.
Parecia que o visitante já conhecia cada peça da casa, e cada canto da anfitriã, sem esta tê-la/ter-se ao menos apresentado a ele. Ela chegou a esquecer-se do pó que recobria a superfície, das flores da estação passada, dos retratos que permaneciam em pé. De súbito, as coisas haviam adquirido nova dimensão: o que antes deveria ser reformulado a tempo para receber qualquer visita, naquele dia não era o motivo que retia o visitante junto a ela, como bem o sabia. E ela nem mesmo esperava que ele, de repente, trouxesse à sua vista a mão que mantinha atrás das costas com os dedos envolvendo meia dúzia de flores vivas e perfumadas, ou que acrescentasse alguma espécie de valor material à desorganização da sua casa. O visitante ditava a ordem dentro dela, sem precisar de qualquer gesto concreto, mesmo a distância.
Após um tempo que não se sabe ao certo quanto foi (inclusive o tempo tornou-se relativo), a despedida fez-se promessa de reencontro:
- Até a próxima, até logo. - ela disse, deixando transparecer na voz um misto de felicidade, pela visita que acabara de receber, e tristeza, sabendo que essa mesma felicidade da presença seria motivo de saudade na ausência.
O visitante respondeu com um sorriso escondido e um olhar fixo no dela, caminhando inicialmente de costas para onde seguia para acompanhá-la por mais tempo enquanto se afastava, passos lentos e compassados, para então virar as costas a ela, até ela perdê-lo de vista em meio aos outros transeuntes.
Foi a primeira e única porta que ela abriu e não fechou após a despedida.
Foi a primeira e única porta que ela abriu e não fechou após a despedida.
2 comentários:
meu, muito lindo! demais. sempre seduzindo né ?
continuee escrevendo, viu? e mais frequente. beeeijo.
Flor, tu escreve muito bem!! Que texto lindo... muito!
Parabéns, beijos!
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